Evitando a todo o custo uma valorização dos rendimentos do trabalho, o executivo de António Costa cumpre a sua função de servir o capital e recorre à promoção do aumento da imigração para manter os baixos salários e promover a precariedade laboral e habitacional tanto de quem cá trabalha como de quem chega para trabalhar.
João Ponte, trabalhador no setor da restauração e estudante
2 de agosto de 2023
Com o início do verão vem a abertura da época balnear, e para lá dos escaldões dos turistas britânicos, do mar de gente nas praias, dos portugueses emigrados que regressam e das festas nas aldeias por esse Portugal a fora há outro fenómeno que de há uns anos para cá tem vindo a marcar esta altura do ano: as queixinhas dos patrões (1) ligados ao alojamento, restauração e similares.
Estas queixas são reproduzidas pela comunicação social incessantemente. Este ano a lengalenga patronal tem uma novidade: não só faltam 40 mil trabalhadores na hotelaria e turismo, como este ano se adivinha recordista em número de turistas.
Já que o patronato português é tão abnegado na missão de encontrar quem explorar, como é que aparentemente falha por algumas dezenas de milhar em recrutar quem se sujeite a trabalhar para si em prol desse famigerado recorde de faturação do turismo? Para desvendar este mistério, há que analisar os dados e informações já recolhidas e publicadas sobre o tema, e conhecer quem conhece o negócio.
Breve retrato do setor
O turismo e a hotelaria são dos pilares do frágil crescimento económico do país e representaram segundo os dados do INE (2) mais de 15% do valor do PIB no ano de 2019.Após a queda em 2020 para perto de 8%, já atingiu os 10% em 2021. Quase que já recuperou do impacto da pandemia da Covid-19, pese o abrandamento do mercado interno e o aumento de preços. Segundo a AHRESP (3) a pandemia e a inflação são as culpadas prediletas e nunca a ganância burguesa.
Em 2021 existiam aproximadamente 111 mil empresas a operarem neste campo (4), com uma dimensão média de 3 a 4 empregados por empresa (5), sendo que cerca de 64 mil das empresas do setor eram empresas individuais (6). Em 2022 o número de contratados (7) no ramo ainda não tinha recuperado a diferença face a 2019, ano em que existiam perto de 321 mil trabalhadores alocados ao setor de atividade, em comparação com os 286 mil do ano passado. Há dois anos a AHRESP estimava que no campo da economia em questão cerca de 178 mil trabalhadores estavam ligados à restauração (73%) e 66 mil à hotelaria (27%).
A precariedade tem um peso tremendo na vida dos assalariados da área – mais de metade do emprego criado entre 2013 e 2020 foi através de contratos a prazo ou recibos verdes (8).
Segundo um estudo realizado no último ano pela Eurofirms (9), para entender a perceção que os funcionários têm da sua atividade profissional, conclui que:
as condições que mais pesam de forma negativa são os horários, o salário e a precariedade laboral (…) e a sazonalidade do setor reflete-se nos tipos de contrato que são, maioritariamente (61%), de caráter temporário.
Se em Portugal os contratos não permanentes (10) correspondiam em 2022 a cerca de 16,5% da força de trabalho empregada, no alojamento e na restauração este valor mais do que triplica. Longos períodos experimentais de 90 ou 180 dias dos contratos sem termo são também uma forma de precarização e desestabilização da vida de quem trabalha.
A hotelaria é o setor onde menos se valoriza salarialmente a qualificação profissional e em que a média salarial é a segunda mais baixa do país, sendo inferior a 1000 euros mensais, superior apenas à da agricultura. Em 2018, praticamente um terço dos trabalhadores da hotelaria e restauração recebiam o salário mínimo nacional (11) em vigor, uma percentagem mais elevada do que em qualquer outra esfera da atividade económica.
Para lá dos números, uma breve conversa em tom informal com um qualquer empregado do setor acaba por desaguar nas mesmas conclusões. Os salários são baixos e as horas extraordinárias são muitas, com poucas folgas, pois a semana de trabalho muitas vezes tem 6 ou até 7 dias. A instabilidade é regra e a hora de saída em muitos locais de trabalho não passa de uma ideia abstrata numa folha de papel. Os horários bipartidos fazem com que o trabalho ocupe quase todo o dia e por vezes deixam de ser divididos para se unirem numa jornada de exploração que facilmente atinge e supera as 10, 12 ou 14 horas. A categoria profissional é um detalhe irrelevante do contrato e do recibo de vencimento visto que os trabalhadores fazem mil e uma tarefas que lá não estão contempladas sem que haja compensação por isso no prémio salarial. As arbitrariedades e ilegalidades praticadas pelos empresários são diversas, desde a fuga aos impostos até ao incumprimento das regras mais básicas no que se refere a segurança no local de trabalho. É relativamente fácil concluir que ninguém quer trabalhar num restaurante, num bar ou num hotel e que é tudo menos atrativo. Quer dizer, é fácil para quem diariamente vive as dificuldades neste texto referidas… Já na cabeça de quem vive do esforço destes últimos, parece mesmo que não entra.
O Governo, os Patrões e a Imigração
Nem a declarada aposta neocolonialista do atual governo, de aprofundamento das relações de importação de mão-de-obra dos países da CPLP, parece ser suficiente para saciar a sede patronal de explorar o trabalho alheio e lucrar com o suor dos outros. Evitando a todo o custo uma valorização dos rendimentos do trabalho, o executivo de António Costa cumpre a sua função de servir o capital, recorrendo à promoção do aumento da imigração para manter os baixos salários e promover a precariedade laboral e habitacional, tanto de quem cá trabalha como de quem chega para trabalhar.
É importante conceber uma política migratória que considere a atual capacidade estrutural de integração e garanta que quem vem para Portugal ganhar a vida não ficará à mercê de redes de tráfico humano ou das arbitrariedades patronais, tendo os mesmos direitos que os trabalhadores que já se encontram. Isto impediria que a imigração fosse um fator de pressão negativa sobre os salários. Os patrões e as suas marionetas políticas vão promover a imigração enquanto for útil para os seus lucros e vão iniciar ou intensificar discursos xenófobos e chauvinistas quando esta já não lhes for necessária.
O modelo económico vigente está a transformar o país naquilo que a União Europeia e os seus defensores a nível nacional sempre ambicionaram para nós: o país-hotel onde quem trabalha não tem direito a nada a não ser salários de miséria, no limiar da sobrevivência. Uma estância balnear, colónia das nações de onde vêm os turistas que visitam uma triste caricatura do país que um dia sonhámos ser. Uma alternativa económica é necessária e possível.
Notas
(1) Alguns exemplos do que referi:
(3) Declarações da representante da Associação de Hotelaria Restauração e Similares de Portugal (AHRESP), uma das principais associações patronais do setor: Todos os dias fecham 14 restaurantes em Portugal - SIC Notícias (sicnoticias.pt)
(8) Estudo disponível em: Os-salarios-em-Portugal.-Padroes-de-evolucao-inflacao-e-desigualdades.pdf (colabor.pt)
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